quinta-feira, 29 de maio de 2008

Na estrada


Depois que voltei de viagem, tive tempo para ler On the road, do Jack Kerouac. Sempre via esse livro nas bancas e sabia que era a bíblia da geração beat e que talvez fosse interessante ler, em termos de cultura geral. Mas sempre tive uma relutância que só posso explicar da seguinte forma: um livro daquela grossura que conta sobre uma viagem só pode ser enfadonho. Ademais, nunca entendi muito bem o que foi essa geração beat. Lembro que, no primeiro ano de faculdade, uma professora citou esse termo e minha amiga perguntou o que significava. Confesso que não me lembro de como ela explicou, mas ficou na minha mente a imagem de poetas pessimistas e maltrapilhos vestidos de preto, envoltos por uma atmosfera densa composta por acordes de jazz e fumaça de cigarro.

Enfim, eu estava errada quanto ao livro: ele não é nada enfadonho. Mas, ao ler On the road, você corre sério risco de começar a achar a sua vida um tédio total. Os personagens vivem, acima de tudo, com intensidade. Lançam-se em aventuras malucas todos os dias sem se importar com nada nem ninguém. São um pouco egoístas até... Mas como se divertem! Acabam em situações as mais improváveis e conhecem pessoas de tudo quanto é tipo. Não se preocupam com o futuro e não se importam de não fazer absolutamente nada do que a sociedade considera como “util” ou “construtivo”. Que inveja, como podem fazer tudo isso e ainda sair impunes?

É verdade que Kerouac não idealiza essa vida. Em muitos momentos, seu personagem, Sal Paradise, é acometido por tédios e tristezas como acontece com qualquer outro mortal que caminha pela vida nos trilhos da normalidade:

“Fui à casa da namorada de Eddie recuperar minha camisa de flanela xadrez, aquela de Shelton, Nebraska. Ela estava lá, toda abotoada, toda a imensa tristeza de uma camisa.”

“Tão chato assim. Foi uma noite melancólica. Eu me sentia como que num sonho desprezível, cercado por irmãos e irmãs, todos estranhos.”

“Ela se virou, entediada. Ficamos deitados de costas, olhando para o forro e refletindo sobre o que Deus deveria estar pensando quando fez a vida ser tão triste assim.”

Considerando que Sal Paradise é Jack Kerouac, também não é certo dizer que ele saiu incólume da sua longa viagem de loucuras. Eduardo Bueno escreve no prefácio do livro que Karouac “morreu em 1969, depois de anos sentado no sofá vendo programas de auditório na TV da casa de sua mãe (com quem morou a vida inteira), barrigudo, alcoólatra e reacionário, afastado de seus companheiros da geração beat, odiando cada cabeludo americano e se perguntando o que, afinal, havia de errado com On the road”.

Será que cada um recebe ao nascer uma cota de intensidade que deve ser usada ao longo da vida inteira e alguns escolhem gastar tudo de uma vez e outros preferem guardar um pouco pro final? Será que uma juventude completamente hedonista e irresponsável tem necessariamente que acabar recebendo essa espécie de punição, como aconteceu com Kerouac?

Na cadeia
Falando em punição: como é que a Amy Winehouse consegue a façanha de ser presa tantas vezes em tão pouco tempo? Tudo bem, ela usa drogas. Mas o Keith Richards também, e você não ouve falar que ele foi preso. Aliás, taí um que saiu impune de uma vida de excessos.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Passageiros da classe sub-turística


Estive incluída nessa categoria de passageiros numa viagem de Orlando a Fort Lauderdale em março deste ano. Mas antes, um preâmbulo: nos EUA existe uma única empresa de ônibus que atua por todo o país, a Greyhound. Os veículos em si não são muito diferentes daqueles que costumo usar aqui no Brasil no meu trajeto São Paulo – Ourinhos: meio apertados, meio desconfortáveis, não muito limpos, mas fazer o quê? O grande diferencial dos Greyhounds são seus passageiros.

Bem atrás de nós (estávamos eu e dois amigos brasileiros – a Carla e o Leandro), sentaram-se dois casais estranhíssimos. Era difícil decidir se eles pareciam ter acabado de sair de uma penitenciária ou de um sanatório. Uma das mulheres tinha marcas de cortes nos braços que eram sistemáticas demais para serem conseqüência de um acidente. Seus olhos vidrados denunciavam que ela mesma tinha se cortado. A outra mulher era quase um homenzinho e seus companheiros eram velhos gordos e usavam chapéus. Todos falavam alto, davam risadas exageradas e pareciam personagens de algum filme trash, moradores de trailers de algum semi-deserto dos EUA e criminosos em potencial. É sério: nunca vi pessoas tão feias em toda a minha vida.

Do meu lado estava uma velhinha canadense muito simpática. Logo que me sentei ao seu lado, ela contou que estava indo a Fort Lauderdale para visitar sua irmã, que, no dia seguinte, faria 90 anos. Ela me contou exatamente a mesma história depois que acordou de um cochilo de meia hora. Fiquei calculando quantas vezes eu teria que fingir surpresa ao ouvir as mesmas coisas ao longo do percurso de cinco horas até Fort Lauderdale. Mas durante o resto da viagem ela pareceu bem lúcida e manteve uma conversa coerente comigo e com meus amigos.

Ela, afinal, tinha toda a razão de se confundir um pouco: estava viajando de ônibus há dois dias, desde Toronto, Canadá. Fiquei imaginando ao lado de quantas pessoas ela já havia se sentado desde então e para quantas pessoas ela já tinha contado suas histórias tristes: ela costumava vir para a Flórida com o marido todos os anos durante o inverno. Mas agora já fazia 15 anos que não vinha: da última vez, o marido foi dormir uma noite na casa de veraneio e não acordou mais. Também contou da filha, de 60 anos, que trabalha atendendo os telefonemas do 911, o serviço de emergência dos EUA. Finalmente, manifestou sua apreensão com relação à irmã: não sabia se ela ainda dirigia bem o suficiente para ir buscá-la na rodoviária (com 90 anos, imaginei que não).

Chegando à Fort Lauderdale, não tive a oportunidade de conhecer a nonagenária, que confundiu a data e achou que a irmã chegaria no dia seguinte. Nossa amiga teve que tomar um táxi. Quanto a nós, ficamos esperando a tia da Carla (na verdade, tia da mãe dela), que ela mesmo nunca tinha visto. A gente ficava olhando despretenciosamente para cada carro que estacionava, tentando identificar traços brasileiros nas senhoras que dirigiam. Finalmente fomos apanhados e nos sentimos em casa no percurso até Boca Raton, passando pela beira da praia e por condomínios luxuosos.

*Foto: eu, Leandro e Carla na rodoviária de Fort Lauderdale. Essa quarta pessoa ao fundo é um dos passageiros do ônibus

sexta-feira, 2 de maio de 2008

"Dia mágico"


Essa expressão, cunhada por um amigo logo no primeiro ano de faculdade, aplica-se aos dias que começam muito bem, quando você está rodeado por seus melhores amigos conversando e rindo, e, de repente, depois de algum descuido qualquer, você se vê sentado no ponto de ônibus sozinho numa noite fria, escura e chuvosa. Pensamos até em escrever uma tese de mestrado sobre o tema, já que o “dia mágico” parecia ser um acontecimento recorrente na ECA. O título seria algo como “O dia mágico e a pós-modernidade”, ou “O dia mágico e a transubjetividade da comunicação”. Acabamos não levando o projeto adiante, mas os dias mágicos continuam se repetindo em nossas vidas.

O último de que me lembro aconteceu quando fui com alguns amigos conhecer Daytona Beach. Foi num dos meus últimos dias na Flórida. Fazia sol, era um dia de praia perfeito. Num dos carros fomos eu, a Roberta (minha amiga brasileira) e dois amigos russos que conhecemos no hotel, o Anton e o Valério. Anton era o mais engraçado e, talvez, o mais normal dos russos. Valério era o mais... hm... peculiar: excessivamente grande e branco, muito parecido com o que eu imagino ser um Neanderthal. Toda vez que se apresentava, enfatizava a última vogal de seu nome: ValériÔ (em russo, o “o” átono é pronunciado como “a”, portanto, a verdadeira pronúncia de seu nome é ValériA, mas ele deve ter sido bastante hostilizado nas primeiras vezes que se apresentou desse jeito nos EUA, principalmente por seus colegas da construção civil).

Além de nós, tinha mais um carro de russos, portanto os falantes de português estavam em grande desvantagem na hora de tomar decisões. Em certa altura, paramos no que descobri ser um supermercado e, quando a Roberta me perguntou o que estávamos fazendo lá, respondi com toda a certeza: “eles pararam para comprar bebidas”. Quando eles saíram segurando uma bola de vôlei, foi então que percebi o quanto não estávamos entendendo nada do que eles estavam falando.

Chegamos em Daytona à tarde e, depois da compra da bola de vôlei, fomos direto à praia. O quanto não me surpreendi quando entramos de carro dentro da praia! Os carros simplesmente circulavam livremente pela areia e estacionavam por lá mesmo. Enquanto a praia de Miami era tão imaculada e indiferente à atmosfera urbana e cosmopolita em volta, Daytona Beach era excessivamente contaminada pela “civilização” daquele lugar. Entendi, então, por que diabos os carros que circulavam na cidade tinham rodas tão grandes: para agüentarem rodar sobre as areias fofas da praia.

Nos poucos trechos da praia em que os carros eram proibidos, podia-se ver uma paisagem bem bonita e amena, mas essa atmosfera era logo interrompida por alguma música alta ou alguém berrando num microfone. Não era uma época nada amena: estávamos em pleno spring break. Apesar dos carros e do barulho e do fato de que nossos amigos-motoristas começavam a ficar bêbados, até que nos divertimos bastante na praia.

À noite, combinamos de encontrar o Diego (ou Big D, meu amigo de dois metros), que vinha depois junto com o Fernando. Por algum motivo não muito claro, resolvemos ir ao cinema para passar o tempo até que ele chegasse, pois ele saberia dizer onde aconteceriam as festas. O filme: 10.000 bC, a pior coisa que já vi em muitos e muitos anos.

Finalmente o Diego chegou e estávamos no processo de escolher a balada quando o Fernando foi ameaçado de ser preso por não ter dado licença para uma moto passar, ou algo assim. Diego e Fernando banidos daquela calçada pelo resto da noite, estávamos novamente eu, a Roberta e os russos. A balada foi horrível: música ruim, ambiente péssimo, pessoas estranhas e um touro mecânico bem no meio de tudo isso. Dei graças a Deus quando resolveram ir embora. Reencontramos o Diego, que tinha ficado perambulando sozinho pela praia depois que se perdeu do Fernando, e fomos buscar o carro no estacionamento de um Burguer King.

É claro que o carro não estava mais lá. Então quer dizer que aquela placa de “tow-away zone” de fato merecia alguma atenção? Foi quando aprendi o significado do verbo tow – “your car was towed, sir” – disse a funcionária que estava varrendo o Burguer King. De repente, estávamos eu, Roberta e Diego sentados no chão do estacionamento vazio, esperando virem buscar-nos depois de pegarem o carro não-sei-onde pagando uma multa de 150 dólares. Um carro de polícia apareceu e o policial disse que teria que nos prender se continuássemos sentados ali. Expliquei a situação e ele nos mandou sentar num banco a uns 10 metros, onde fui picada por uma formiga.

No caminho de volta dormi um pouco, mas aquele maldito som me atormentava o sono. Eles escutavam uma música popular russa que, juro por Deus, tem a mesma melodia da Suíte dos Pescadores, do Dorival Caymmi. Mas, ao contrário do arranjo de Damiano Cozzela, em russo, ela soava muito brega e tinha uma letra melosa e romântica. Anton contou uma vez que os meninos bêbados costumam sair andando abraçados pelas ruas, chorando e cantando essas músicas na madrugada russa. Às vezes, eles fazem a mesma coisa com o hino nacional.

Chegamos ao hotel por volta das 5 da manhã. É claro que, já em Orlando, achamos que fôssemos todos morrer quando o Valéria quase entrou com o seu velho carro a toda velocidade na lateral do veículo de algum cidadão americano inocente que estava mais sóbrio e mais acordado do que ele. Nessas alturas, ninguém mais ousava contrariar o motorista, que já estava gritando com todo mundo só porque tinha acabado de jogar 150 dólares no lixo e passara as últimas duas horas dirigindo enquanto todos os outros dormiam. Estávamos todos com cara de bunda quando finalmente entramos em nossos quartos para dormir depois desse dia mágico ao extremo.